Sérgio Y. vai à América
(By Alexandre Vidal Porto)


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Author | Alexandre Vidal Porto |
Como falarei da vida alheia, é justo que também fale da minha.
Meu nome é Armando. No mês passado, completei 70 anos. Em geral, pensam que eu sou mais velho. Durante toda a minha vida foi assim. É o que espero quando conheço alguém. Aparento ter mais idade do que tenho. Mas essa velhice aparente precoce é comum entre os psiquiatras. Absorvemos os problemas dos pacientes. Envelhecemos por eles.
Sou um dos melhores médicos desta cidade. Sei que soa imodesto apresentar-me nesses termos, mas é como se referem a mim quando comentam o meu trabalho. Orgulho-me do reconhecimento que me concedem. Sou vaidoso, mas isso não me incomoda. Sempre achei a modéstia uma qualidade superestimada.
Tenho consciência de que a vaidade pode ser traiçoeira. Acho, porém, que, na minha vida, ela desempenhou um papel construtivo. A vaidade impediu que eu admitisse grandes alterações no ritmo natural de minhas vontades. Como profissional, escolhi não fazer concessões. Explorei minha especialidade como quis. Podia não ter dado certo. Mas, felizmente, deu.
Meu pai também foi médico. Quando eu era criança, gostava de vê-lo entrar no carro de manhã para ir ao hospital. Na minha concepção infantil, saber que ele era médico eliminava qualquer possibilidade de morte ou de dor, para mim ou para a minha família. Dava-me segurança. Quando encontrávamos pessoas que o conheciam, me orgulhava do respeito e da deferência com que o tratavam.
Queria ser médico como ele. Cresci idolatrando-o. Meu pai morreu em um acidente de trânsito estúpido, aos 48 anos de idade. Eu tinha acabado de completar 16. Depois de sua morte, minha convicção de querer ser médico tornou-se mais firme e mais profunda.
Foi o que eu fiz.
Em 1967, formei-me na quinquagésima turma da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Desde o primeiro ano, fui o melhor aluno de minha classe. Fiz residência médica nos Estados Unidos e voltei ao Brasil para fazer meu doutoramento. Depois disso, prestei concurso para docência. Comecei como Professor-Associado de Psicologia Médica. Aposentei-me como Professor Catedrático de Psiquiatria.
Além dos compromissos acadêmicos, mantive sempre um número variável de pacientes em psicoterapia. Ao longo de minha carreira, obtive bons resultados. Acho que ajudei alguma gente.
***
Meu pai, Miguel, foi o primeiro namorado de minha mãe, Ondina. Ela enviuvou aos 45 anos e não voltou a se casar. Morreu com um ano a menos que a idade que eu tenho hoje. Do tempo em que ficou viúva até a minha formatura na faculdade, não houve um dia em que tenha deixado de ver as irmãs, Alba e Yeda, que moravam juntas em uma casa antiga no bairro de Moema.
Às onze e trinta da manhã, Seu Joel, o motorista, a levava à casa de minhas tias na Alameda Jauaperi. Almoçavam juntas as três. Depois, sentavam-se no sofá, em frente à televisão. Tomavam uma xícara de café e assistiam ao Jornal Hoje e ao filme da Sessão da Tarde, qualquer que fosse, diariamente.
Por volta das quatro e meia, Dona Maria José, a empregada, lhes servia mais café, com uma fatia de bolo, biscoitos ou o que houvesse de gostoso na cozinha. Às vezes, em lugar de ficarem em casa, saíam para o shopping center ou para alguma consulta médica. Seu Joel as levava. Sentavam-se juntas no banco de trás do carro.
Quando fui para Nova York fazer residência, minha mãe se mudou temporariamente para a casa das irmãs. Nunca mais saiu de lá. Ondina, Alba e Yeda viveram juntas na Alameda Jauaperi até morrerem.
Foram-se como aves, no espaço de dez meses. A primeira a falecer foi Alba, atropelada por um motoboy enquanto tentava pegar um táxi na saída da agência bancária onde recebia sua aposentadoria. Morreu em janeiro. A segunda foi minha mãe, que havia sido diagnosticada com câncer no pâncreas no final do ano anterior. Partiu em maio. Yeda foi a última. Sofreu um derrame durante a noite e jamais acordou para ver o dia 19 de agosto.
***
Eu também sou viúvo. Minha mulher, Heloísa, morreu faz quase sete anos. Depois de sua morte, o que eu senti de mais concreto foi alívio. Doía vê-la definhando, aos poucos, no hospital. Para me proteger da dor, cerca de um mês antes de sua morte real, desenganei-a dentro de mim. Matei-a antes que ela morresse. Mas estive ao seu lado todo o tempo, até que seu coração finalmente parasse de bater.
Hoje, já superei a perda de Heloísa. Levo uma vida normal e satisfatória. Não me sinto sozinho. Mas falar do meu estado de viuvez ainda me incomoda. Não porque isso me sensibilize ou cause tristeza. É justamente o contrário. Acho que deveria me sensibilizar mais do que me sensibilizo. É isso o que me perturba.
Tive um casamento feliz que durou trinta e sete anos. O casamento continua a ser feliz na foto sobre a cômoda no quarto que dividíamos. A existência da minha mulher nos limites daquele porta-retrato me basta. Não preciso de mais.
Posso parecer frio, desprezível até, mas exponho meus sentimentos dessa forma para r...”